sexta-feira, 26 de março de 2010

Filósofa e mártir

Numa tarde de março do ano 415, durante a quaresma, uma mulher de 60 anos é tirada de sua casa carruagem por uma multidão enfurecida e arrastada até a igreja de Cesarión, antigo templo de culto ao imperador romano César, em Alexandria, no Egito. Lá é despedida e tem sua pele e carne arrancadas com ostras (ou fragmentos de cerâmica ou azulejo, segundo outra versão). Acusada de bruxaria, é destroçada viva pela turba desgovernada. Já morta, arrancam seus braços e pernas. O restante do cadáver é queimado em um pira nos arredores da cidade. Era o fim da trajectória impressionante da primeira mulher matemática da História e uma das principais filosofas da Antiguidade: Hipácia.
A intelectual, professora carismática que inspirou alguns dos grandes cérebros de seu tempo, tinha influência em diversas esferas da vida pública. O prefeito da cidade, Orestes, indicado por Roma, a consultava antes de muitas de sua decisões. Por isso mesmo, ela tornou-se um obstáculo para a sede de poder de Cirilo, bispo de Alexandria, inimigo político do também cristão Orestes e, possivelmente, o mentor do assassinato da filosofa.
Quem foi essa mulher, capaz de se destacar num mundo em que o intelecto era propriedade masculina? Há controvérsia sobre o ano de seu nascimento: 355 é o mais aceito. Fala-se também em 370. Nesse caso, ela teria apenas 45 anos ao ser linchada. Foi criada pelo pai Teón -
grande matemático, astrónomo e director do Museu de Alexandria -, nesse ambiente de estudo e pesquisar. Ela superou o mestre na ciência dos números e ainda tornou-se uma expoente do pensamento filosófico neoplatônico. É considerada a última intelectual de destaque da capital egípcia, centro da cultura grega no mundo helenístico. '' Haviaem Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha de filósofo Teón, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos filósofos da época. Tendo progredido na escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber ensinamentos'', diz a historia de Sócrates, o Escolástico, na História Eclesiástica, escrita no século 5. Mulher de enorme beleza, adotou o ascetismo como norma de vida: vestia-se apenas com o manto dos filósofos, uma espécie de túnica branca. Não acumulava riquesas e foi selibatária até o fim da vida. Um episódio ilustra sua rigidez moral: um aluno (eram todos homens), apaixonado, insiste em cortejá-la. Hipácia, então mostra a ele um desses panos higiênicos : ''É isto que tu amas na verdade e não a beleza por si mesma''. Hipácia foi a principal representante sentante do neoplatonismode seu tempo. Dedicava-se a pensar o mundo das ideias em relação ao mundo físico, a investigar se a alma era una ou dividida, a partir de questões meta-físicas levantadas pelo filósofo Plotino (205-270). Ensinava em cursos fechados, mas fazia também conferências abertas que atraíram homens poderosos, como Orestes, e visitantes de Roma, Atenas e outra cidades. ''Orestes se tornou amigo r vonfidente de Hipácia. Encontravam-se freguentemente, discutindo não só suas palestras. Isso a colocou claramente ao lado dele na luta contra Cirilo. Ela deve ter parecido uma grande ameaça para Cirilo, pois seus discípulos fora'', diz o matemático americano Leonard Mlodinow em A Fanela de Euclides.

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